sábado, 17 de abril de 2010

João - O Enterro pt II



A primeira pessoa a cumprimentar João foi sua tia. Ele ficou surpreso ao olhar em seus olhos e não ver nenhuma acusação neles, apenas tristeza. Ele sabia que a tia o desprezava pois ela costumava dizer que ele não tinha a chama da vida dentro dele mas sim a geleira do inferno.
Ele também não gostava dela porque achava que ela queimava combustível demais se preocupando com a chama da vida alheia. E além de tudo isso tinha Mário, um derrotado que não podia ver um rabo de saia mas que sempre conseguiu esconder da mãe sua verdadeira face. Contra Mário ele não tinha nada já que ele nunca extendeu a João o tratamento da mãe, mas o seu silêncio toda vez que estavam reunidos enquanto a tia praticava seu esporte preferido, que era humilhá-lo, havia deixado um ranço.
Depois da tia foi a vez das duas amigas da igreja, Solange e Márcia, cumprimentá-lo. Ele se lembrava bem das duas nas tardes em que se encontravam na casa de sua mãe para comer bolos, rezar, ler a bíblia e falar mal de todas as outras irmãs da igreja. Solange em especial tinha um veneno natural mortal. As duas chegaram a tentar algumas vezes a convencê-lo a frequentar a igreja, mas a resolução firme dele em não se meter com essas coisas fez com que desistissem de vez. Após os cumprimentos todos se dirigiram para a capela para velar o corpo. Ao chegar lá João olhou para sua mãe em silêncio, e pela primeira vez desde que recebera a notícia ficou realmente triste. Vendo sua mãe dentro do esquife de madeira, inerte, olhos serenamente fechados, mãos colocadas de maneira ordenada sobre o peito, ele se deu conta de que pela primeira vez ele via sua mãe numa completa expressão de repouso. Sua mãe sempre fora bastante irrequieta, nunca estava parada. Ele percebeu que ela não combinava com aquela falta de movimentos. De repente ele percebe que sobre todos os aspectos era um cara de sorte pela mãe que tivera. Ela nunca achou estranho sua personalidade introspectiva, ela mesma, olhando em retrospecto, se mantinha em movimento dentro de seu próprio mundo. Ele não sabia se ela guardava alguma mágoa ou raiva pelo abandono do marido pois nunca ouviu dela um único lamento sobre isso. Vai ver ela o amava ainda, vai saber. E agora aquela mulher que começava a faxina num cômodo da casa apenas para voltar para ele quando todos os outros estivessem limpos num looping sem fim jazia ali, sem movimento, sem a tal chama da vida. Solange, ao ver a desolação de João, resolve praticar sua solidariedade:
- Eu sinto muito João. Sua mãe era uma mulher única. Agora tudo o que você pode fazer é se voltar para Deus.
Em outros tempos João teria ficado irritado com aquele proselitismo, mas dessa vez apenas respondeu com sinceridade:
- Deus, ainda que existisse, não poderia fazer nada por mim agora. Na verdade ele vem se demonstrando bastante ineficaz para resolver quase tudo.
- Você não deveria culpar Deus pelas desgraças do mundo. Não é ele o responsável pela loucura que assoma os homens, e a morte é preço pelos nossos pecados.
- Pelo menos você não colocou a culpa no diabo, continue assim e logo você passa a se sentir responsável pelos prpórpios erros. João percebe que essas palavras a atingiram. Tentando não demonstrar raiva ela diz:
- Você demonstra desprezo pelo mundo mas você não está em melhor posição do que nós. Solange olha para o esquife como que para corroborar o que acabou de dizer. - Você precisa parar de olhar para o abismo João, nem todos estão aqui para tornar sua vida miserável.
- É, tem razão, nem todo mundo...
Solange fica em silêncio. O Padre chega para a missa de corpo presente, recita sua homilia e por fim começa a entoar o odioso louvor Segura na Mão de Deus, e a canção é realmente eficiente pois todos começam a chorar. Os funcionários do cemitério chegam para ajudar joão a carregar o caixão. No trajeto até a cova ele pensa na dolorosa inutilidade de tudo aquilo. Ele sabe que o universo não liga para nada disso, na verdade ele não liga nem pros mortos e nem pros vivos, pois o universo funciona através de mecanismos dos quais não fazemos parte. - Nos tire da jogada e ele vai continuar como antes, de fato nem vai notar nossa retirada. Diante desse pensamento ele quase sorri ao perceber a ironia no fato da humanidade se dar tanta importância. - Existem mais bactérias que gente, então foda-se. Chegando à cova João observa todo o trabalho dos coveiros. Quando o caixão começa a descer ele observa suas três companheiras de infortúnio jogarem flores. Ele se lembra que sua mãe detestava flores, mas não acha graça naquilo. Quando tudo por fim acaba e todos se encaminham para a saída ele percebe que sua tia anda a seu lado.
- Mário não veio por causa do trabalho. Não deram o dia pra ele e sabe como é difícil arrumar um bom emprego nesses dias. Diante do silêncio de joão ela continua:
- João, sei que temos problemas, mas não posso deixar de me sentir um pouco responsável por você agora que sua mãe se foi. Essa era uma coisa que ele não esperava. E nem desejava. Ele gostava de sua independência e de sua falta de laços afetivos, ter a sua tia se metendo em sua vida era a última coisa que ele queria nesse momento.
- Muito obrigado, mas está tudo bem. Além do que você já tem o Mário para se preocupar.
- João, até quando você pretende viver assim, fugindo das pessoas, se isolando do mundo como se ele fosse algo contagioso? Fugir dos seus sentimentos não te torna uma pessoa incapaz de sentir. Isso não é natural para nós, acredite.
- Muitas coisas não são naturais e as pessoas a adotam, fazem delas modelos de comportamento, nomeiam de etiqueta e depois dizem ser a cultura de um povo, sua identidade. Crer num ser invísivel é uma delas. Por outro lado para algumas coisas naturais dão todo tipo de nome sujo, demonizam até seu lado mais bonito, ou simplesmente tentam ignorá-lo a todo custo, o sexo é um exemplo.
- Sim, e cada uma delas, a seu tempo, vem á superfície. Ignorá-los ou dar-lhes nomes bonitos ou feios não mudam o que elas são, nem impedem ninguém de fazê-las ou não, mas todo mundo, talvez até mesmo por isso tudo, tentam ao menos entendê-las, e ter alguém para compartilhar essas experiências serve para ampliar os horizontes e não o contrário. Eu posso ser uma velha carola mas não sou burra, João, e, a despeito das aparências, nunca me entreguei a escuridão humana. João fica realmente surpreso ao ouvir aquilo tudo de sua tia, e talvez por conta da circunstância em que se encontra, aquilo o atinge.
- Mas de que adianta tudo isso? A sociedade é doente e se apóia em alicerces tão sólidos quanto a areia: Deus, economia, política, consumismo, liberdade. As pessoas agem como se a liberdade fosse algo que existisse e que se corroborase através da vida em grupos, mas a verdade é que a própria palavra não tem sentido. O que une as pessoas não é o amor ou a felicidade, mas o medo. Eu não tenho os medos irracionais da humanidade como a morte ou a solidão. Isso sim é liberdade. Não preciso fingir absolutamente nada para estar junto de outras pessoas como famílias, comunidades ou grupos, como pássaros em um ninho esperando que a comida lhes venha á boca. Eu nunca pertenci porque nunca quis pertencer a nada.
- Bom João, não vou insistir, é a sua escolha e a sua vida. Mas lembre-se que existe um preço alto por essa liberdade, e a vida vai lhe cobrar, afi nal o que você enterrou aqui hoje não era só um pedaço de carne. E já que você escolheu viver assim, lembre-se que não haverá ninguém por perto para ouvir seu grito ou aplacar sua febre.
E assim sua tia acelerou o passo e foi embora, sem olhar pra trás. E aquelas palavras ecoariam na cabeça de João pelo resto de sua vida.