domingo, 26 de junho de 2011

No inferno pelo céu das outras

A profissão dela a definia melhor do que qualquer outra tentativa de descrição. O olhar era apático, quase tristonho, mas não tristonho, e sim, doloroso. Nada que Camila não poderia suportar. A propósito, esse era seu nome naquele momento, Camila. A identidade não fazia muita diferença saber.
Ela ia todo dia ao quartel general de sua equipe exibir seus hematomas, suas feridas e as gravações das humilhações que passava. Alguns diziam que ela não tinha alma, e que nenhuma outra pessoa conseguiria suportar o que ela suporta, principalmente porque ela jamais reagia, nem poderia, isso estava no contrato de trabalho.
Sua voz era meio rouca, devido a todos esses anos vivendo dessa mandeira, alguns dizem que sua voz sempre foi assim, e outros dizem que nunca a ouviram falar, outros ainda disseram que foi um acidente. Dizem que em um desses trabalhos ela quase morreu.
Ela voltou para casa e esperou ele chegar. Ele chegou enquanto ela lavava o chão, ele disse que estava estressado, ela não respondeu. Em alguns minutos, ele perguntou sobre o jantar, ela disse que ja ia esquentar, e a noite começou cedo, quando ela foi acertada pelo cabo de vassoura nas costelas, quase no mesmo lugar do dia anterior.
As violencias variavam entre verbais e sexuais, e ele a ameaçou com uma faca. Quando seu sofrimento chegou ao maximo, ele foi findado. Seu agressor estava preso, seria morto, mas o seu sofrimento, longe de acabar. Há quem diga que ela gosta de sofrer, sim ou não, suas ferias tinham acabado de começar. Sua recuperação seria lenta, mas a proxima missão ja estava marcada para daqui a uns meses, e seria menos um maniaco no mundo.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Auto-retrato

Acho que esse é o meu momento, então vou falar de mim. Eu sou um loser. Sim, digo isso sem dramas e sem querer causar comoção em ninguém. É só um fato. Não estudei o necessário, não tenho uma carreira nem sequer razoável, não constituí família. Tive alguns relacionamentos, mas nenhum seguiu adiante.

Eu as amei, cada uma delas a seu tempo, mas não era pra ser. Durante muito tempo eu acreditei que a culpa era delas, me achava um incompreendido, sempre acreditei ser o otário passado pra trás da relação. Mas hoje, depois de tanto tempo eu descobri a verdade. O problema era eu. Não que eu não tenha tido acertos, tentei fazer minha parte, tentei mostrar o quanto as amava ainda que do meu jeito torto, mas não fiz o suficiente. Eu sei disso. Eu sei que elas me amaram, tenho certeza. Tem uma coisa sobre mim que eu descobri depois de muito tempo, e que pode ajudar a explicar a minha falha em manter relacionamentos de longa duração, tanto os amorosos quanto as amizades. Existe algo dentro de mim. Não necessariamente dentro de mim, mas da minha mente. É algo que só agora me dou conta que deve ter tido seu embrião por volta dos meus 15 anos. É algo escuro, frio e confuso. E conforme eu fui crescendo ela foi crescendo junto e foi tomando conta de mim, por isso eu sou escuro, frio e confuso. Eu deveria ter percebido isso há mais tempo. Lembro de uma conversa que eu tive com alguém, que talvez gostasse mesmo de mim e por isso tenha prestado atenção, em que eu disse: "estou triste", e ele respondeu: "você não está triste, você é triste. Intrinsecamente e profundamente triste". E eu disse: "não, não sou". Eu não me lembro quem era essa pessoa. Isso é triste. Eu fiz alguns bons amigos, mas nunca fui bom em mantê-los. Faz parte de se viver num mundo escuro, frio e confuso. Hoje eu tenho 40 anos. 40 anos de uma vida vazia, de uma vida vivida para dentro, no meu próprio mundo escuro, sentindo e sendo frio, totalmente confuso. Uma frase da Virginia Woolf define bem minha falha: "Eu perdi amigos, alguns com a morte, outros por simples incapacidade de atravessar a rua." Apesar de tudo alguns amigos e pessoas próximas perceberam alguns sinais. Nem todos percebem, eu mesmo não percebi. Eu queria muito sair desse ciclo de descer ladeira abaixo mesmo quando as coisas estão bem, mas conforme o tempo passou eu percebi que fui ficando cada vez mais confuso, ao invés de menos. Hoje só posso fazer o que fiz a vida inteira: lamentar e pedir desculpas. Não tenho muito mais a oferecer, já que tive uma vida de um loop de desculpas e lamentações. E é assim que eu encerro esse pequeno retrato de mim mesmo: me desculpando por tudo.
.....
A mãe acabara de ler a nota. Olha mais uma vez para o corpo do filho naquela mesa do IML. A nota fora encontrada na cena da morte, junto ao frasco de veneno. Ela não sabe definir o que sente, sua mente é um turbilhão: ela sente tristeza, dor, culpa, remorso, impotência. Mas não sente raiva. Ela guarda a nota no bolso enquanto os legistas empurram a mesa para dentro do freezer. Ela se dá conta que um pedaço de si mesma se foi. Ela diz baixinho: "eu te amo, filho. Me desculpe". E essa foi a última coisa que disse antes de mergulhar na escuridão.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Mulher Atômica - 01 - Não era pra ser

Essa história começa assim, como uma beringela mal cozida. Por mais gostosa que seja, parecerá um chiclete quando você a colocar na boca, evoluirá para uma espécie de borraxa que não dissolve, semelhante a um chiclete, mas que não é doce e por fim, não será tão ruim porque existem outras beringelas bem mais cozidas do que essa no prato e você está com fome. E como essa bendita beringela, nossa nova heroína não é assim tão fácil de tragar.
Dos velhos clichês aparecem os mais absurdos e barrocos heróis, mas não com a Mulher Atômica, ela não gosta de roupas fluorescentes. No momento ela nem sabe o que é, mas jura que não vem do mesmo lugar que as pessoas a sua volta, normalmente é mal compreendida e reciprocamente mal compreende o resto. Alguns dizem que pode ser dislexia, também não tiro essa possibilidade.
Sua infância não passou em branco, mas ela não lembra bem como foi, ou não gosta muito de lembrar, mas pode-se dizer que foi daquelas bem normais, com direito a bullying tanto sofrido quanto provocado na escola e traumas de infância como todos temos. Ela era uma pessoa calma até chegar a adolescencia, quando as pressões da vida começaram a atormentar sua mente. Com 17 anos, se tornou uma espécie de office girl em uma empresa dessas cheias de repartições, no centro.
Uma semana de trabalho e, o emprego, ja estava se tornando insuportável, porque a Margarete da contabilidade, oitavo andar, odiava o João do almoxarifado, terceiro andar, e mandava a pobre entregar seus recados e documentos toda hora, sendo que no terceiro andar o elevador não para, e no quarto e quinto andares, a escada está sempre fechada. A maratona estava tonificando o corpo de nossa querida Mulher Atômica, cujo o nome é quase insignificante, mas bem chamado, Daniella.
Em um belo dia, chamado sexta-feira, cujo tinha sido bem estressante, depois de 6 meses trabalhando naquele lugar, Daniella, que odiava ser chamada de "Daniele" estava a um ponto de explodir! Ela sentia isso. Alguns chamariam de TPM, outros de uma explosão de verdade. Na saída do trabalho Daniella foi abordada por alguns sujeitos que mexeram no seu cabelo, e roubaram sua bolsa. Em um epico momento, tudo que ela conseguiu fazer foi desmaiar.
Três dias depois, no hospital, sem roupa, documentos ou arranhões, ela acorda, calma e feliz, sem ter ideia de que na verdade tinha explodido e matado 10 pessoas, inclusive os ladrões, mas que para os médicos e outras pessoas ela foi um milagre na explosão de um bueiro, sua morte simplesmente não era pra ser ali...

domingo, 19 de dezembro de 2010

Demônios

Ele segurava seus joelhos com força sentado ali apoiado na cabeceira da cama. Ele sabe que não pode gritar, pois se acordar seus pais a punição será severa. Ele apóia a cabeça nos joelhos e fecha os olhos com força. Ele segura seu pequeno crucifixo na mão direita e pede aos céus que o proteja. Mas ele tem medo.
Ali no escuro e no silêncio ele se sente sozinho. Ele abre os olhos, ou imagina que os abriu, não saberia dizer, e olha pelo canto do olho. Ele sabe que estão ali, aqueles olhos a fitá-lo com escárnio, zombando do seu medo. Ele tenta se mover o mínimo possível, ele aperta o pequeno crucifixo em sua mão e volta a fechar os olhos. Então ele pode ouvir o barulho embaixo da cama. A sua cama treme de leve e por um instante ele imagina que a cama vai levitar. Ele olha para a janela e pela pequena fresta o vento entra e balança a cortina, que se move sinistramente. Em cada vinda da cortina ele se pergunta se aquilo que vê seria um rosto o observando. Sim, ele quase pode ver aqueles olhos grandes, inexpressivos, espreitando. A porta de seu armário se move lentamente, fazendo soar um leve ranger que parece durar minutos. Tudo parece ganhar vida naquele quarto, e ele quer acreditar que é o vento. Ele tem a impressão que luzes piscam no seu quarto, mas ele não saberia dizer de onde vem. Ele começa a rezar, mas quando ele faz isso parece que tudo se intensifica ali: o farfalhar da cortina, a tremida da cama, as luzes que piscam, o ranger da porta, o rosto na janela. Ele começa a sentir um gelo que cresce incontrolavelmente dentro dele, como se tudo fosse explodir num instante. Ele pode ouvir seu nome ser pronunciado, ele queria que fossem os anjos, mas ele tem a certeza que não pela inflexão da voz. Ele se deixa arrastar pela cama e puxa a coberta até o rosto, mas ele tem certeza que tem um rosto bem acima do dele, e ele não ousa tirar a coberta. O som da cortina começa a confundí-lo, a porta do armário com certeza se abriu, e o rosto da janela com certeza está lá, esperando. Ele fecha os olhos e se encolhe. Ele fica ali, atento a tudo, rezando e apertando o seu cricifixo, torcendo para que a colcha possa ser suficiente para sua proteção. E assim adormece.

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- Ei menino, acorde, vamos, você tem que ir pra escola. Vamos rapazinho, como dorme, não sei como consegue!

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- Pronto amor, aqui está seu café, e pra você aqui está seu cereal.
- Viu filhão, você já é um rapazinho, dorme sozinho. Eu não disse que não precisava ter medo?

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Carta aos proximos desafortunados

Rio de Janeiro, Terça-Feira, 28 de Março de 2019.

Espero que tire bom proveito dessa carta, venho dizer como acho que isso tudo começou.

Estampido, fumaça, buzinas, farois, metal retorcido, oleo e fogo. A violencia caminhava como uma noiva nas ruas, aquela noite prometia ser um inferno. Ninguem queria parar, nem deveria, não era momento para heroismo ou misericórdia. Infelizmente que os mortos contassem seus mortos.

Eu não gosto muito da ideia de contar sobre esse dia, mas é o tipo de coisa que não posso deixar passar em branco. Fez uma semana ontem, mas parece ainda que é o mesmo dia. Não poderia deixar esse mundo sem dizer algo util para o que vier após a mim.

Acho que as pessoas enlouqueceram, toda a sanidade foi embora e o mundo entrou em colapso. Por algum milagre ainda existe energia, mas o governo ignorou a possibilidade de "plebeus" sobreviventes. Desde quarta-feira não temos mais meios de comunicação. Consegui juntar alguns conhecidos que não enlouqueceram e fizemos um abrigo. Não sei por quanto tempo ficaremos aqui sem ninguem descobrir.

Ontem presenciei uma cena que não sai da minha cabeça, o exercito executou uma criança no meio da rua que parecia estar descontrolada. Não sabemos se é uma boa ideia tentar nos aproximar deles. Estamos desarmados e com muito medo.

Amanhã partiremos daqui, soube que há um possivel abrigo na região dos lagos. Iremos de carro até la.

OBS: tem comida desidratada pela casa toda e se você tiver sorte, tem comida "fresca" na geladeira. As chaves do outro carro estão na estante.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

fim?

- Nada no radar...
- Tenho a sensação de que perdi o contato com eles, eles nem sequer responderam ao ultimo chamado. Não consigo entender.
- Talvez, talvez tudo tenha ido mesmo pelos ares, se tiver acontecido isso, morreremos aqui.
- É, só tínhamos um caminho para voltar para casa, não é?
- Um caminho e só um, único e imutável jeito...


- Acho que pode ser pior..
- O que?
- Pode não haver mais casa. Já pensou nisso?
- Já. Me da arrepios...
- Não demorará muito para o estoque de comida e de oxigénio acabar..
- O que você sugere?
- Não sei, mas não queria simplesmente morrer, não assim, entende?
- Entendo, mas.. nós fomos preparados para isso, para morrer aqui.
- Ninguem está preparado para morrer, ainda mais sozinho.
- É, ninguem, mas... nós não estamos sozinhos. Nós nos temos.
- É, mas no final, quando as coisas acabarem, estaremos sozinhos..
- É.
- Vamos parar de falar e pensar em uma possível solução para sobrevivermos.
- Sim, temos que economizar oxigénio e energia...
- É..

...

- Não acho que esteja certo..
- O que?
- Ficar assim, tudo acabar..
- Como?
- É, acho que, se algo tivesse acontecido la, haveria um sinal de emergência..
- Verdade, teríamos isso nos monitores, no radio, em qualquer coisa.

...

- É, lembrei de uma coisa... Estamos muito distantes, o sinal pode demorar para chegar.
- Hum, vou fazer os cálculos...
- Tipo, acho que devemos emitir um sinal de longa distancia, talvez eles nos achem.
- Hum, 100 dias terraquios, acha que conseguimos sobreviver?
- Talvez.. podemos tentar..
- É.

...

- Acho que gostarei de morrer com você..
- Quase um casamento, não é? hehe
- É, quase...
- Mesmo assim, ainda amarei as estrelas.
- Eu também...

domingo, 5 de setembro de 2010

O Amor Natimorto

- Nossa, ele é tão bonito. Maria pensa baixinho, mal escuta o que as amigas tagarelam na mesa entre os goles de cerveja ou vodka. Sem perceber mexe em sua bolsa e procura o espelho, se olha nele e tenta ver todos os seus ângulos, os reais e os imaginários. Coloca a bolsa no colo e tenta voltar pra animada conversa da mesa.
- Você está louco, esse jogador é uma bosta, foi tarde do meu time. José está totalmente distraído, numa animada discussão sobre futebol. Apesar de tudo não pode deixar de notar a menina que se olha no espelho distraída, parecendo imersa em seu próprio mundo. - Como ela é bonita, pensa.

Por um instante Maria pensa em João, e em como ele a machucou. Sempre que ela pensa, ainda que inconscientemente em um garoto, ela lembra de João. Graças a tudo o que aconteceu em seu último relacionamento ela se fechou e levantou seus escudos. Antes, os garotos tinham potencial de ser o amor da sua vida, agora todos são potenciais fontes de dor. As coisas inverteram, e de lá pra cá sua razão fala mais alto que os sentimentos.

José se lembra de Madalena, da traição e depois dela indo embora. Os homens gostam de bancar os durões mas Madalena deixou José no chão. Ele realmente gostava dela, e ela só pisou. Mulheres! Gostam mesmo é de ter um animal de estimação, não de um namorado. Por isso os caras pelos quais elas caem de quatro geralmente são os canalhas, ele pensa. Mundo de merda.

De repente Marina, uma das amigas da mesa de Maria, reconhece Mário, um dos amigos da mesa de João, e assim eles vão das apresentações até até a junção das mesas. José senta ao lado de Maria.
Eles falam pouco um com o outro, cada um com seus medos e seus receios: Maria se acha feia, gorda, burra e em tudo que ela enxerga de maravilhoso nele, ela se coloca no extremo oposto. José segue na mesma linha, com seus medos e problemas. Todos se divertem e no fim do dia se despedem. José pensa em pedir o msn ou orkut de Maria, mas acha melhor não. Maria queria que ele lhe pedisse o número de celular, mas entende o fato de ele não perguntar como desinteresse.
E assim termina aquele sábado, José indo pra casa, solitário, pensando em Maria, e Maria na frente da TV pensando em José.
Eles nunca mais se encontraram.