terça-feira, 16 de junho de 2009

Dias Noturnos - Capítulo 4 (Passos do Destino)

A quinta-feira amanhecia, Sara havia adormecido com aquela carta estranha na mão. Não havia sonhado, mas havia pensado demais durante a noite. Estava em um dilema, seria mesmo aquela carta para ela? Sara não sabe, mas está tão curiosa quanto a isso e quanto o que tem no endereço. O despertador ecoava novamente, e a trazia de volta para a estranha realidade. Havia muito o que pensar enquanto se arrumava para trabalhar, o que a desviara um pouco da tal carta, afinal, será que o dinheiro seria suficiente para sobreviver ali?
Ainda nem havia amanhecido direito, mas o frio úmido e noturno começava a dar lugar ao vapor sufocante diurno. Sara andou pelo corredor, desceu por aquele elevador velho, passou pela portaria do prédio e ganhou as ruas. Era como qualquer outra manhã, ônibus lotado, garoa fina e fétida, náuseas, ansiedade, sonhos e lembranças.
“Ele me disse uma vez, que meu destino seria grandioso e...”

- Eu irei te admirar como eu admiro um herói!
- Você diz coisas engraçadas, sabia? - Sara sorria.
- Ah é? Vai ficar fazendo pouco das minhas previsões? - soltando uma pequena risada – sou bom nisso! Acredite, sou vidente!
- Vidente? - soltou uma longa gargalhada e o encarou risonha – Você está assistindo filmes demais, Macos!
- Não é porque você não acredita que eu não seja. Alem disso eu ainda leio pensamentos! - dizia virando de lado sobre a grama ficando mais perto de Sara. - Eu sei exatamente no que você está pensando agora... - e a encarou esperando sua reação.
Sara não conseguia parar de olhar para a boca de Marcos, mas seus quinze anos não a deixavam perceber o quão obvia ela estava sendo, e talvez, mesmo se soubesse, não faria questão de disfarçar. O que mais Sara queria era que Marcos realmente estivesse lendo seus pensamentos, e ele o fez, não porque ele pudesse ler pensamentos, mas ele sabia bem o que ela queria, se aproximou até que ela fechasse os olhos e disse baixinho:
- Se acredita agora que eu leio mentes, sorria para mim...


Novamente Sara foi interrompida pela lembrança desagradável de ter que descer na próxima parada. Porém as coisas complicaram, a multidão de pessoas que lotava o ônibus não a deixou sair e ela só conseguiu se ver livre de tudo isso dois pontos depois quando foi cuspida para fora, quase caindo de cara no chão. E novamente a menina sonhadora se via perdida na cidade. Já não bastava o atraso, agora ela estava em algum lugar que nunca havia ido, provavelmente nem mais na Vila dos Porcos era, ela estava com problemas. Fora o salario contado, uma passagem de volta a Vila dos Porcos significava alguma privação mais a diante, porem era a única solução no momento e Sara resolveu atravessar a rua.
Não era comum as pessoas andarem muito pela cidade, principalmente se aventurarem em lugares que não conhecem, mas ali estava Sara no cruzamento, parada na frente da faixa de pedestres junto com uma multidão de outros anônimos esperando o sinal fechar. Ela colocou a mão no bolso e se lembrou de ter colocado a misteriosa carta ali antes de sair de casa e, logo após, em duvida sobre o que deveria fazer, olhou para o topo dos prédios, alguns abandonados, outros sendo reformados e lentamente foi descendo seus olhos até sentir-se empurrada pela multidão e ter a impressão de ter lido por ali em algum lugar algo familiar escrito, algo bem familiar. Sara lutando para permanecer em pé voltou a procurar o que havia lido e encontrou uma placa um pouco enferrujada e quebrada no topo de um poste indicando a rua que estava e achou que estava sonhando, ela acabara de ler “Rua dos Encontros”.

...

Victor terminou de se limpar alguns segundos antes da agua acabar, saiu lentamente do chuveiro e parou em frente a pia, onde havia um pequeno espelho quebrado, notou que suas manchas estavam sumindo rapidamente, seu cabelo não estava muito maior, sua barba não havia crescido e a grande mancha na barriga estava menos notável agora. “O que está acontecendo? O que está acontecendo comigo?”
Aos poucos, Victor foi percebendo cada diferença, como conseguir ler seu nome escrito no macacão cinza sem estar de óculos, mas pouco depois tudo voltou a embaçar e a dor no abdômen começou a se intensificar. Sem pensar duas vezes, Victor vestiu-se e saiu do banheiro apressando seus passos para a escada. Esbaforido, chegou ao andar de baixo daquela cabana velha, e parou surpreso. Havia uma mesa grande de madeira com um copo e um prato de comida em sua extremidade oposta e nada mais alem disso, nem uma toalha, nem sinal de vida por ali, havia apenas uma cozinha americana bem suja e vidros engordurados.
Victor queria hesitar, mas andou até o prato, sentou-se em um banco e pegou o garfo. A comida estava quente e aparentava estar gostosa, e garfada por garfada, ele esvaziou o prato, logo após gole por gole ele esvaziou o copo que supunha estar cheio de suco industrializado de laranja. Ao terminar, Victor começou a tentar lembrar de como foi parar ali, e tentava lembrar que dia poderia ser hoje...
“Eu lembro, Pedro me achou no chão, machucado e sujo. Mas não lembro de mais nada, acho que desmaiei.”

Pedro gritava para Victor continuar com ele enquanto o colocaram no carro, Victor conseguia ouvi-lo e apertava sua mão a cada sinal de desespero de seu amigo...
“Pedro me trouxe até aqui?”
Horas depois Victor acordava no quarto com a mulher careca, ele se lembra bem disso, mas era inútil tentar lembrar-se algo após o comprimido azul.


O estalar das madeiras e o som dos passos de alguem despertaram Victor do pequeno transe, agora ele estava apreensivo do que aconteceria, ele percebeu que havia mais uma porta próxima a mesa, não percebeu antes porque a fome não deixou. Logo a porta começou a abrir-se, e o sol começou a entrar de forma mais direta e com ele, a sombra no chão, que antes de Victor supor quem era, sua voz a dedurava.
- E então? Posso casar?
- Achava que você era apenas um sonho da ultima noite, mas pelo visto. - Victor tentou olha-la diretamente, mas o sol o impedia.
- Bom, pelomenos agora você já não se espanta tanto com o meu corte de cabelo. - passando a mão em sua careca, deu uma pequena risada e terminou de entrar na sala fechando a porta atrás de si.
- Mas agora me responda, quem é você?
- Continua perguntador como a três dias atrás. - balançou a cabeça negativamente e sorriu novamente.
- Três dias? Eu dormi tanto assim? - ele se espantava e ela ria.
- Dormiu menos do que imagina, mas se isso te satisfaz, meu nome é Marina. - Aproximou-se dele e estendeu a mão. - Prazer.
Victor hesitou um pouco mas estendeu a mão para cumprimenta-la, era o mais educado e indicado a fazer. Ela apertou forte e o encarou durante um tempo, talvez dois segundos, talvez dez minutos, mas para ele durou uma eternidade. O olhar dela o dava medo, era penetrante e direto como nunca tinha visto, talvez fosse a primeira pessoa realmente diferente que ele havia conhecido ou pelomenos a primeira delas que conseguiu o chamar atenção e isso o assustava. As pessoas eram vazias para Victor até ali, e talvez realmente fossem vazias, mas sempre existem pessoas que fogem a regra ou que ignorem seguir o mesmo rumo que todas as outras. Victor não sabia, mas o medo que ele sentia era de ter sido vazio por todos esses anos.
Ela o despertou do transe com um sorriso curto e discreto, soltou sua mão, virou-se e foi até a janela engordurada que ficava sobre a pia da pequena cozinha.
- Precisamos ir! Agora que você está bem não faz mais sentido ficar aqui.
- Como assim?
- Não podemos nos dar ao luxo de conversar agora, vamos!
- Mas eu quero saber... - e ele foi interrompido por uma voz não muito doce.
- Tento te explicar no caminho, suas coisas estão dentro dessa mochila. - deixou uma de suas mochilas cair no chão – vamos, pegue-a, não temos muito tempo para chegar na estrada.
Victor e Marina pegaram suas poucas coisas e saíram da cabana. O sol ainda estava quente e fazia arder a pele dos dois, eles passaram a andar sobre a areia logo deixando toda a escavação para trás, o que deixou Victor ainda mais curioso. “Por que andar nesse deserto? Eu provavelmente não cheguei aqui andando, por que tenho que sair daqui assim?”

...

Sara lutava contra aquela multidão na quinta-feira, tentava manter-se encostada na parede até que as pessoas passassem por completo. Era coincidência demais, ela já não queria voltar a Vila dos Porcos, e se houvesse ainda alguma duvida sobre isso, aquela placa era a resposta. Só poderia ser o destino. Realmente sua vida estaria para mudar completamente, Sara sentia isso, seus pelos arrepiavam, sua boca estava seca e a cada passo dado para dentro da Rua dos Encontros era um calafrio a mais.
Suas mãos desceram pela capa de chuva, se enfiaram nos bolsos da calça, e achavam a resposta no bolso direito da frente, a carta estava lá. “Número 128. É isso, não posso esquecer!” E ela andou naquela rua larga, com prédios grandes, passo a passo olhando os números decrescendo, e o ultimo que ela viu antes de mergulhar novamente em suas lembranças era o número 2480.

Ela sorria como uma criança ao ver um sorvete cheio de cobertura, e ele se aproximava mais e mais até encostar lentamente seus lábios nos dela. Suas bocas se buscavam, a mão esquerda de Marcos passeou pelo braço direito de Sara, lentamente foi subindo até os seus cabelos. Ela escorregava a mão sobre o peito de Marcos, estava vivendo um sonho.
A grama, o sol, os pássaros e aquela bela sombra sob a amendoeira, tudo parecia colaborar e celebrar o beijo proibido. Mas havia algo que eles estavam esquecendo, era o dia de despedida de Sara, as férias dos sonhos estavam acabando e seus encontros as escondidas não poderiam mais acontecer. A manhã estava acabando e seus beijos foram interrompidos pelo som de motores. Ela enfim estava voltando para casa.


Sara acordava novamente de seus pensamentos, suas lembranças que motivavam seus sonhos e toda aquela vontade de ser mais do que é. Ela deu mais um passo, atravessou mais uma rua e se deparou com o número 128 estampado na parede de um prédio de classe média. “Edifício Borges” Era demais para Sara, todos os últimos acontecimentos, aquele sobrenome, aquela carta, sua vida infernal, era tudo que ela precisava para acreditar em destino. Sara queria acreditar que agora estava parada diante de seu destino, um prédio enorme e bonito, longe da sua vida comum.

3 comentários:

Marcela Reinhardt disse...

E tomara que sara seja feliz... e que o mundo tenha bondade com ela!

www.marcelareinhardt.blogspot.com

Marcela Reinhardt disse...

ah, coloquei o seu endereço na minha listinha de "blogs que eu leio" no meu blog!:)

Brunno Benatti disse...

Céus.. por onde começo? (que tal pelo começo?)

Li de uma vez, do primeiro ao quarto capítulo. Aliás, ler não é o termo correto. Eu devorei sua história Rê. Como eu tinha comentado antes, não só a decadência e a sujeira do mundo e da personalidade dos persongens foi bem retratada. Todo o resto também! (adorei a despedida da sara e do marcos!)Que maestria em pintar cenas e instigar a curiosidade. Muito humanos seus personagens. A Sara pelo passado dela e o Vitor pela profundidade, e pelo azar considerável. Queria saber mais do passado do Vítor... você comentou que ele tinha sonhos impossíveis, mas não explicou quais eram. Aliás, ficaram trocentas questões em aberto!

Gostei também do susto que você me deu com a data na carta "antiga". 2048! Até lá não havia muito que caracterizasse o marcador "sci-fi" dos contos... até o Vitor ter um surto de wolverine e começar a se curar. rsrs

"Ouça-me" e ouça-me bem srta. Renata Salles... continue essa história. Eu preciso saber como ela continua! kkk Tô falando sério viu. ¬_¬ ai de você se largar a Sara na porta dos sonhos dela e o Vitor sem respostas, no meio da estrada com uma careca arretada. Eles merecem continuação.